"Com o seu próprio martírio, Dietrich Bonhoeffer mostrou que foi um discípulo 'decidido'. Mas, como ele mesmo advertiu, a essa espécie 'não cabe elogios ou aplausos por seu cristianismo decidido. O olhar não deve recair sobre ele, mas somente sobre aquele que chama e sobre todo o seu poder'".
O comentário é de Patricia Fachin, jornalista, graduada e mestre em Filosofia pela Unisinos.
Deus é amor e misericórdia e o Evangelho pode ser resumido nessas duas palavras. Esse é o dito que os cristãos não cansam de professar. Para nos ajudar a compreender o que ele significa, os teólogos se debruçaram sobre a Palavra e dirigiram seus esforços no sentido de explicitar o dito e o não-dito no Evangelho, dando ênfase a aspectos que lhes pareceram mais pertinentes para o momento histórico em que viveram - e vivem - e para as suas próprias indagações no entendimento e vivência desta Palavra.
O teólogo luterano Dietrich Bonhoeffer, que morreu aos 39 anos como mártir durante a Segunda Guerra Mundial, assassinado pelos nazistas em 09 de abril de 1945, inquietou-se, entre outras coisas, com o fato de a Palavra de Jesus ter se tornado um tanto estranha e até incomoda para a sua própria Igreja. Diante dessa constatação, ele convidou os cristãos a refletirem sobre a sua condição de discípulos de Cristo que, no seu entendimento, não é algo que deveria ser restrito apenas àqueles que optaram pela vida consagrada, sacerdotes e pastores, mas diz respeito a todos os batizados. Na introdução de um dos seus livros, "Discipulado", ele manifesta esta inquietação: "Para nós, é menos importante o que requer este ou aquele indivíduo da Igreja, mas sim o que deseja Jesus, é isso o que queremos saber". Ou seja, o que deseja Jesus também de nós mesmos que vamos às missas e aos cultos?
Capa do livro Discipulado (Foto: Reprodução)
Para refletir sobre esse ponto, Bonhoeffer dedica quatro capítulos da obra ao tema do discipulado: "O chamado ao discipulado", "A obediência simples", "O discipulado e a cruz" e "O discipulado e o indivíduo". Nessas reflexões, ele comenta passagens evangélicas em que Jesus chama os discípulos e compara as respostas daqueles que, ouvindo o chamado, imediatamente abandonaram tudo para seguir o mestre, e aqueles que, também tendo ouvindo o chamado, o condicionaram ou se viram impossibilitados de segui-Lo porque compreendem - ou mal compreendem, como Bonhoeffer explica - o que isso requer.
Uma das passagens através da qual ele analisa o comportamento dos que ouviram o chamado é a seguinte:
"Indo eles pelo caminho, alguém lhe disse: Seguir-te-ei para onde quer que fores. Mas Jesus lhe respondeu: As raposas têm seus covis, e as aves do céu, ninhos; mas o Filho do Homem não tem onde reclinar a cabeça. A outro disse Jesus: Segue-me! Ele, porém, respondeu: Permite-me ir primeiro sepultar meu pai. Mas Jesus insistiu: Deixa aos mortos o sepultar os seus próprios mortos. Tu, porém, vai e prega o reino de Deus. Outro lhe disse: Seguir-te-ei, Senhor; mas deixa-me primeiro despedir-me dos de casa. Mas Jesus lhe replicou: Ninguém que, tendo posto a mão no arado, olha para trás é apto para o reino de Deus. (Lucas 9, 57-62)".
Sobre o primeiro discípulo, que se ofereceu para seguir Jesus, o teólogo sublinha: "Ele não foi chamado. A resposta de Jesus adverte o entusiasmo de que ele não sabe o que faz" no sentido de que não sabe o que significa seguir Jesus: "padecer". Logo, esclarece, "ninguém pode desejar isso por escolha própria. Ninguém pode chamar a si mesmo, diz Jesus, e suas palavras ficam sem resposta".
O segundo discípulo, comenta, ao manifestar o desejo de enterrar o pai antes de seguir Jesus, está preso à lei humana. "Ele sabe o que quer e o que deve fazer. Antes, porém, deve cumprir a lei, e só então poderá seguir Jesus. Interpõe-se aqui, entre a pessoa chamada e Jesus, um mandamento patente da lei".
O terceiro discípulo, por sua vez, "julga-se no direito de impor condições. Com isso, entra em total contradição. Quer pôr-se à disposição de Jesus, ao mesmo tempo que impõe algo entre Jesus e si mesmo: 'mas deixa-me primeiro...'. Quer segui-lo, porém quer criar ele próprio as condições para o discipulado. (...) Fica claro que, nesse momento, o discipulado deixa de ser discipulado; transforma-se em programa humano a ser realizado segundo meu próprio julgamento e que posso justificar por meio da razão e da ética. O terceiro discípulo, portanto, deseja ingressar no discipulado, porém no momento em que o aceita condicionalmente mostra não desejar mais ser discípulo".
Esses três, compara, diferem-se de Mateus e Pedro, que compreenderam o que o chamado requer: a criação de uma nova situação em que é "impossível conciliar a existência anterior com o discipulado". Por isso, Mateus abandonou a coletoria de impostos e Pedro, as redes. E mais: eles sabiam quem estava chamando. "Uma vez que Jesus, todavia, é o Cristo, tudo tinha que ficar evidente desde o início, isto é, que sua mensagem não é a criação de uma doutrina, mas a criação de uma nova maneira de ser. Tratava-se de realmente caminhar com Jesus. Estava claro para a pessoa que era chamada que, para ela, só havia uma possibilidade de fé em Jesus: abandonar tudo e seguir o Filho de Deus que se fez humano". Trata-se do que costumamos ler nesta página semanalmente: do convite para ir para a outra margem, abandonar os velhos vícios, costumes e hábitos para iniciar uma vida nova com Cristo, permitir-se ser guiado pelo Espírito.
A consequência do chamado, segundo Bonhoeffer, não é uma "confissão oral da fé em Jesus, mas um ato de obediência". Para compreender a sequência lógica entre uma ação e outra, diz, há quem busque explicações psicológicas ou históricas, mas nelas jamais será possível encontrar a resposta. Ele explica:
"Porque para essa sequência de chamado e ação só existe uma justificativa válida: o próprio Jesus Cristo. É ele quem chama e, por isso, o publicano o segue. Nesse encontro pode-se testemunhar a autoridade de Jesus, incondicional, imediata, e que não demanda explicações".
Com o seu próprio martírio, Bonhoeffer mostrou que foi um discípulo "decidido". Mas, como ele mesmo advertiu, a essa espécie "não cabe elogios ou aplausos por seu cristianismo decidido. O olhar não deve recair sobre ele, mas somente sobre aquele que chama e sobre todo o seu poder".
Sem medo de ser taxado de "fanático", expressão que ele repete ao longo do livro para esclarecer que a adesão a Cristo requer renúncias e o abandono da existência vivida até então porque "o discipulado é compromisso com Cristo", Bonhoeffer insiste na obediência como imperativo para andar atrás do Senhor. Para muitos de nós, que não queremos ser taxados nem de "fanáticos" nem de "hereges" - e muitas vezes nem sabemos o que somos e o que e a quem seguimos -, as palavras do teólogo são tão duras quantas as do próprio Evangelho: "Cristo chama, o discípulo simplesmente o segue". Em outras palavras, "siga-me!" significa obediência irrestrita porque diante do próprio Deus nos resta cumprir os mandamentos, a começar pelo primeiro - e clamar sem cessar por misericórdia.